Dificuldades para a
busca da verdade
Convite à
Filosofia, Marilena Chaui, 2000
Excelente texto de Marilena Chaui.
Principalmente nos dias atuais, em
tempos de fake News, em tempos que não se ler mais conteúdos, mas apenas as
manchetes e as toma como verdades absolutas.
Diante do quadro atual, de tantos
“donos da verdade”, de tantas mentiras soltas ao vento e de quando as pessoas
já não mais se incomodam se o que houve ou ler representa a verdade, desde que
atenda aos seus interesses ou as suas expectativas e pontos de vista, esse
texto de Marilena Chaui nos lembra a importância da crítica e do
questionamento, essência da filosofia, como forma de não tomar cegamente como
verdade tudo que se apresenta, mas de buscar nas mais variadas fontes e das
mais variadas formas as verdades dos fatos.
Devemos lembrar também que a certeza
sempre traz junto alguma arrogância e que a dúvida é a humildade de admitir a
possibilidade da existência de pontos de vista diferentes do seu e do meu
Devemos lembrar também que não é a
certeza que leva à sabedoria, mas a dúvida, o questionamento. A certeza é
característica dos inflexíveis, o que leva quase sempre à radicalização,
enquanto a dúvida é característica das pessoas que têm a mente aberta, que se
permitem aprender, que se permitem transformar. E são essas pessoas que
transformam o mundo.
Esvazie a sua mente e reflita sobre o
texto sem ideias pré-concebidas.
Boa leitura!
“Em nossa sociedade, é muito difícil
despertar nas pessoas o desejo de buscar a verdade. Pode parecer paradoxal que
assim seja, pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências, que
luta por escolas, que recebe durante horas diárias informações vindas de jornais,
rádios e televisões, que possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas
de cinema e de teatro, vídeos, fotografias e computadores.
Ora, é justamente essa enorme
quantidade de veículos e formas de informação que acaba tornando tão difícil a
busca da verdade, pois todo mundo acredita que está recebendo, de modos
variados e diferentes, informações científicas, filosóficas, políticas,
artísticas e que tais informações são verdadeiras, sobretudo porque tal
quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas, que, por
isso, não têm meios para avaliar o que recebem.
Bastaria, no entanto, que uma mesma
pessoa, durante uma semana, lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse
três noticiários de rádio diferentes; à tarde, freqüentasse duas escolas
diferentes, onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados; e, à noite, visse
os noticiários de quatro canais diferentes de televisão, para que, comparando
todas as informações recebidas, descobrisse que elas “não batem” umas com as
outras, que há vários “mundos” e várias “sociedades” diferentes, dependendo da
fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria
perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer
tal experiência e por isso não percebem que, em lugar de receber informações,
estão sendo desinformadas. E, sobretudo, como há outras pessoas (o jornalista,
o radialista, o professor, o médico, o policial, o repórter) dizendo a elas o
que devem saber, o que podem saber, o que podem e devem fazer ou sentir,
confiando na palavra desses “emissores de mensagens”, as pessoas se sentem
seguras e confiantes, e não há incerteza porque há ignorância.
Uma outra dificuldade para fazer
surgir o desejo da busca da verdade, em nossa sociedade, vem da propaganda. A
propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como crianças
extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de faz-de-conta”:
nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o automóvel
faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos negócios,
cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente, bem
empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o cigarro
leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e de
negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas.
A propaganda nunca vende um produto
dizendo o que ele é e para que serve. Ela vende o produto rodeando-o de magias,
belezas, dando-lhe qualidades que são de outras coisas (a criança saudável, o
jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso feliz, a casa agradável, etc.),
produzindo um eterno “faz-de-conta”.
Uma outra dificuldade para o desejo da
busca da verdade vem da atitude dos políticos nos quais as pessoas confiam,
ouvindo seus programas, suas propostas, seus projetos enfim, dando-lhes o voto
e vendo-se, depois, ludibriadas, não só porque não são cumpridas as promessas,
mas também porque há corrupção, mau uso do dinheiro público, crescimento das
desigualdades e das injustiças, da miséria e da violência.
Em vista disso, a tendência das
pessoas é julgar que é impossível a verdade na política, passando a desconfiar
do valor e da necessidade da democracia e aceitando “vender” seu voto por alguma
vantagem imediata e pessoal, ou caem na descrença e no ceticismo. No entanto,
essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em muitas
pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam desejar
conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos começam
a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que lhes é
mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a indagar
sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir liberdade
de pensamento e de conhecimento.
Para essas pessoas, surge o desejo e a
necessidade da busca da verdade. Essa busca nasce não só da dúvida e da
incerteza, nasce também da ação deliberada contra os preconceitos, contra as
idéias e as opiniões estabelecidas, contra crenças que paralisam a capacidade
de pensar e de agir livremente.
Podemos, dessa maneira, distinguir
dois tipos de busca da verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da
incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige que saiamos de tal situação
readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da deliberação ou decisão
de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de
encontrar explicações, interpretações e significados para a realidade que nos
cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude filosófica.”
Reflexões à luz de grandes pensadores da humanidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário