Reflexões à luz de grandes pensadores da humanidade
A produção da verdade: Relação entre o
conhecimento, o poder e as massas.
Uma
visão de Michel Foucault., Nascido em Paris em 1926, foi filósofo, historiador,
teórico social e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no
célebre Collège de France, de 1970 até 1984.
Em
tempos de tantas “verdades” prontas e repassadas como verdades absolutas, Michel
Foucault vem, com o texto abaixo, nos chamar a atenção para a relação existente
entre a verdade real e a verdade construída para atender interesses de instituições,
partidos políticos, governos e ideologias.
Nesse
texto, Michel Foucault já explicita a difícil relação entre o poder constituído
e os que fazem a ciência e a produção do conhecimento, no tocante à produção de
verdades que incomodem ou que sejam contrários à interesses de classes ou de
ideologias.
No
final desse texto, fica alguma orientação de Michel Foucault, sobre como
deveria ser a atuação da sociedade em relação à produção de verdades, assumindo
uma atitude no mínimo questionadora em relação às verdades impostas à ela.
Tenha
uma boa leitura.
Microfísica do Poder,
Michel
Foucault, 1986.
“Vivemos um momento em que a função do
intelectual específico deve ser reelaborada. Não abandonada, apesar da
nostalgia de alguns pelos grandes intelectuais "universais" (dizem: "precisamos
de uma filosofia, de uma visão do mundo"). Basta pensar nos resultados
importantes obtidos com relação à psiquiatria, que provam que essas lutas
locais e específicas não foram um erro, nem levaram a um impasse. Pode−se mesmo
dizer que o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais
importante, na medida em que, quer queira quer não, ele é obrigado a assumir
responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático, farmacologista,
etc. Seria perigoso desqualificá−lo em sua relação específica com um saber
local, sob pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não
interessa às massas (o que é duplamente falso, pois não só elas têm consciência
deles como também neles estão implicados) ou de que ele serve aos interesses do
Capital e do Estado (o que é verdade, mas mostra, ao mesmo tempo, o lugar
estratégico que ele ocupa) ou ainda de que ele veicula uma ideologia cientificista
(o que nem sempre é verdade e tem apenas uma importância secundária com relação
ao que é primordial: os efeitos específicos dos discursos verdadeiros).
O importante, creio, é que a verdade
não existe fora do poder ou sem poder (não é − não obstante um mito, de que
seria necessário esclarecer a história e as funções − a recompensa dos
espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que
souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
Em nossas sociedades, a "economia
política" da verdade tem cinco características historicamente importantes:
a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica
e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para
o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um
imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja
extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações
rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas
dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade,
exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político
e de confronto social (as lutas "ideológicas").
Parece−me que o que se deve levar em
consideração no intelectual não é, portanto, "o portador de valores
universais"; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja
especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em
nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla
especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a
serviço do capitalismo, intelectual "orgânico" do proletariado); a
especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição
de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as
exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na
universidade, no hospital, etc.); finalmente, a especificidade da política de
verdade nas sociedades contemporâneas. E então que sua posição pode adquirir
uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos,
tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou
luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as
estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade.
Há um combate "pela verdade"
ou, ao menos, "em torno da verdade" − entendendo−se, mais uma vez,
que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as
quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos
de poder"; entendendo−se também que não se trata de um combate "em
favor" da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel
econômico−político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos
dos intelectuais não em termos de "ciência/ideologia", mas em termos
de "verdade/poder". E então que a questão da profissionalização do
intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente
colocada.
Tudo isso deve parecer bem confuso e
incerto. Sem dúvida incerto, pois tudo isso não passa de hipótese. Mas para que
fique um pouco menos confuso, eu gostaria de formular algumas "proposições"
− no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas oferecidas para experiências
ou provas futuras.
Por "verdade", entender um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a
circulação e o funcionamento dos enunciados.
A "verdade" está
circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de
poder que ela induz e que a reproduzem. "Regime" da verdade.
Esse regime não é simplesmente ideológico
ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do
capitalismo. E ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos
países socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conheço).
O problema político essencial para o
intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à
ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia
justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O
problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm
na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da
verdade.
Não se trata de libertar a verdade de
todo sistema de poder − o que seria quimérico na medida em que a própria
verdade é poder − mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia
(sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.”
A produção da verdade: Relação entre o
conhecimento, o poder e as massas.
Uma
visão de Michel Foucault., Nascido em Paris em 1926, foi filósofo, historiador,
teórico social e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no
célebre Collège de France, de 1970 até 1984.
Em
tempos de tantas “verdades” prontas e repassadas como verdades absolutas, Michel
Foucault vem, com o texto abaixo, nos chamar a atenção para a relação existente
entre a verdade real e a verdade construída para atender interesses de instituições,
partidos políticos, governos e ideologias.
Nesse
texto, Michel Foucault já explicita a difícil relação entre o poder constituído
e os que fazem a ciência e a produção do conhecimento, no tocante à produção de
verdades que incomodem ou que sejam contrários à interesses de classes ou de
ideologias.
No
final desse texto, fica alguma orientação de Michel Foucault, sobre como
deveria ser a atuação da sociedade em relação à produção de verdades, assumindo
uma atitude no mínimo questionadora em relação às verdades impostas à ela.
Tenha
uma boa leitura.
Microfísica do Poder,
Michel
Foucault, 1986.
“Vivemos um momento em que a função do
intelectual específico deve ser reelaborada. Não abandonada, apesar da
nostalgia de alguns pelos grandes intelectuais "universais" (dizem: "precisamos
de uma filosofia, de uma visão do mundo"). Basta pensar nos resultados
importantes obtidos com relação à psiquiatria, que provam que essas lutas
locais e específicas não foram um erro, nem levaram a um impasse. Pode−se mesmo
dizer que o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais
importante, na medida em que, quer queira quer não, ele é obrigado a assumir
responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático, farmacologista,
etc. Seria perigoso desqualificá−lo em sua relação específica com um saber
local, sob pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não
interessa às massas (o que é duplamente falso, pois não só elas têm consciência
deles como também neles estão implicados) ou de que ele serve aos interesses do
Capital e do Estado (o que é verdade, mas mostra, ao mesmo tempo, o lugar
estratégico que ele ocupa) ou ainda de que ele veicula uma ideologia cientificista
(o que nem sempre é verdade e tem apenas uma importância secundária com relação
ao que é primordial: os efeitos específicos dos discursos verdadeiros).
O importante, creio, é que a verdade
não existe fora do poder ou sem poder (não é − não obstante um mito, de que
seria necessário esclarecer a história e as funções − a recompensa dos
espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que
souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
Em nossas sociedades, a "economia
política" da verdade tem cinco características historicamente importantes:
a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica
e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para
o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um
imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja
extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações
rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas
dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade,
exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político
e de confronto social (as lutas "ideológicas").
Parece−me que o que se deve levar em
consideração no intelectual não é, portanto, "o portador de valores
universais"; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja
especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em
nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla
especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a
serviço do capitalismo, intelectual "orgânico" do proletariado); a
especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição
de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as
exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na
universidade, no hospital, etc.); finalmente, a especificidade da política de
verdade nas sociedades contemporâneas. E então que sua posição pode adquirir
uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos,
tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou
luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as
estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade.
Há um combate "pela verdade"
ou, ao menos, "em torno da verdade" − entendendo−se, mais uma vez,
que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as
quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos
de poder"; entendendo−se também que não se trata de um combate "em
favor" da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel
econômico−político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos
dos intelectuais não em termos de "ciência/ideologia", mas em termos
de "verdade/poder". E então que a questão da profissionalização do
intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente
colocada.
Tudo isso deve parecer bem confuso e
incerto. Sem dúvida incerto, pois tudo isso não passa de hipótese. Mas para que
fique um pouco menos confuso, eu gostaria de formular algumas "proposições"
− no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas oferecidas para experiências
ou provas futuras.
Por "verdade", entender um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a
circulação e o funcionamento dos enunciados.
A "verdade" está
circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de
poder que ela induz e que a reproduzem. "Regime" da verdade.
Esse regime não é simplesmente ideológico
ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do
capitalismo. E ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos
países socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conheço).
O problema político essencial para o
intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à
ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia
justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O
problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm
na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da
verdade.
Não se trata de libertar a verdade de
todo sistema de poder − o que seria quimérico na medida em que a própria
verdade é poder − mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia
(sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário