A IMPORTÂNCIA DOS ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA INFÂNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE
Gilson Tavares – Psicanalista e educador
gilsontavares_psi@yahoo.com.br)
2.7 O apego inseguro
Sabe-se que as crianças desenvolvem diferentes estilos de vinculação. As crianças seguras choram menos e têm menor ansiedade nas pequenas separações cotidianas, saúdam a mãe mais positivamente depois de ausência e ficam mais contentes de ser colocadas no chão depois de pegas no colo, ao mesmo tempo em que respondem positivamente ao serem carregadas. São mais facilmente acalmadas por contato corporal e pedem mais colo. Vistas à luz da perspectiva evolucionária, essas reações de ansiedade à separação involuntária da figura de apego podem ser entendidas como funcionalmente ajustadas.
Quando a mãe rejeita seu filho ou não se mostra confiável,responde de modo inconsistente, imprevisível, cria nele um padrão de apego ansioso, que expressa a insegurança na resposta que pode receber da figura primária e a dificuldade de lidar com seus sentimentos, especialmente aqueles considerados negativos e recusados pela mãe. O comportamento instável da mãe que não pode conter e tolerar as manifestações de raiva e de dependência dos filhos, nem diferenciar os sentimentos das ações ou mostrar que sentir não tem um efeito destruidor real, permite que a criança atribua um valor menor a si mesma e sinta-se obrigada a conter ou reprimir esses sentimentos sem aprender a lidar com eles. Essa situação desenvolve na criança um modelo interno de relacionamento em constante ameaça pela agressividade.
Umas das formas de apego ansioso é o apego evitante, que se manifesta como uma falsa independência, que não protege a criança da ansiedade. A necessidade de expressar sentimentos como raiva, fragilidade, carência, somada à recusa sentida pela criança quando a mãe não lhe oferece acolhimento e conforto, são traduzidas em sentimentos de desvalia, inadequação e levam a criança a reprimir sua necessidade de amor e dependência. A raiva provocada pelas frustrações de suas necessidades não pode ser expressa, pois só trará mais recusa e mais sofrimento, assim a criança aprende a reprimir seus sentimentos e passa a negar qualquer necessidade de apego, mostrando-se autônoma precocemente e desconsiderando todos os sinais de apego tanto internos como externos. Essa estratégia, eminentemente inconsciente, faz com que a criança possa manter-se próxima à mãe sem magoar-se tanto. No entanto, sua raiva pode manifestar-se com outras pessoas a quem não está vinculada. Isso torna o distanciamento afetivo o padrão de relacionamento da criança, que se estende a outras figuras, seguindo um modelo de recusa de aproximação em que a própria criança torna-se "agente de sua própria privação".
Outra forma de apego inseguro é o apego ambivalente, que se expressa por meio de comportamentos alternados entre ansiedade (proximidade) e raiva (afastamento) , busca de proximidade e hostilidade simultâneos, desenvolvendo um comportamento oscilante.
Uma outra categoria é a de apego desorganizado/desorientado, que mistura ambas as formas, resultando em um comportamento contraditório, inconsistente e inconstante. O resultado é que a criança age de modo confuso e frequentemente provoca raiva ou rejeição; ela não sabe como mostrar seu desejo de aproximação, pois o sentimento de amor fica fundido com a agressão. Mostra um processo confuso que promove reação oposta ao tentar encontrar satisfação de suas necessidades, criando respostas de raiva e falham nas relações interpessoais.
Mary Ainsworth, psicóloga norte americana, citada por Maria Inês de Souza Gandra em "A importância do apego no processo de desenvolvimento", desenvolveu um experimento, denominado "Situação Estranha", para identificar padrões de apego, em crianças entre 12 e 18 meses. Este estudo possibilitou a identificação de três padrões diferentes de apego.
• Apego seguro: As crianças classificadas nesta categoria demonstraram ser ativos nas brincadeiras, buscar contato com a mãe após uma separação breve e serem confortadas com facilidade, voltando a se envolver em suas brincadeiras;
• Apego inseguro/esquivo: nesta classificação incluiu aquelas crianças que após uma breve separação da mãe, evitou se reunir a ela quando de sua volta;
• Apego inseguro/resistentes: essas crianças demonstraram, na situação experimental uma oscilação entre a busca de contato com sua mãe e a resistência ao contato com esta, além de terem se mostrado mais coléricos ou passivos que as crianças com os padrões de apego anteriormente descritospor Bowlby.
Vygotsky, professor e pesquisador russo, apresenta sua concepção do eu dizendo que,
[...] O EU se constrói na relação com o outro, em um sistema de reflexos reversíveis, em que a palavra desempenha a função de contato social, ao mesmo tempo em que é constituinte do comportamento social e da consciência. A constituição do sujeito passa, então, pelo reconhecimento do outro, mas fundamentalmente pelo autoconhecimento do eu, considerando que esses processos são idênticos, que acontecem pelo mesmo mecanismo, isto é, pelo mecanismo dos reflexos reversíveis[...].
2.8 O reflexo dos primeiros vínculos nos relacionamentos posteriores
Os modelos de funcionamento interno de uma criança tendem a se repetir durante toda sua vida, com comportamentos que indicam maior ou menor segurança em si própria e no ambiente. O padrão inicial de apego seguro parece favorecer nas crianças uma maior autoconfiança e competência social.
Os vínculos primários com pais e figuras de apêgo secundárias permite a formação de um modelo operativo interno ou representações internas que refletem e condensam sua história relacional e suas expectativas sobre o sentimento pessoal e relacionamento íntimo e próximo com as pessoas. É a partir dessa base que se definem as amizades entre pares, o envolvimento amoroso e a possibilidade de tornar-se pais e mães de um certo modelo.
Quando a figura de ligação é confiável e consistente em suas respostas ao bebê, este pode desenvolver uma resposta de apego seguro; o que corresponde ao estabelecimento de um padrão de vínculo em que o sentimento de auto-estima é positivo e a capacidade de confiança no outro é forte; a criança sente-se aceita e compreendida em seus sentimentos negativos, o que permite reconhecê-los e expressá-los sem medo da rejeição; a criança pode dessa forma manifestar suas dificuldades, suas necessidades e pedir apoio nos momentos de fragilidade, sem receio de ver-se diminuída. Ao fazer isso, pode integrar os sentimentos e sentir-se no controle de uma vida previsível, no convívio social mostra uma expectativa positiva.
Para entender a formação da relação de apego na infância é importante compreender que a possibilidade de ser compreendido e acolhido, mesmo durante a raiva ou no momento de fraqueza, permite estabelecer o sentimento de certeza, de segurança sobre seu valor e do amor que lhe é de direito. Mas o grau em que essas características afetivas podem ser retomadas e ampliadas ao longo da vida, seja por meio de novas experiências com outras figuras de apego, seja por meio de um eventual processo psicoterapêutico, pode depender do grau com que esse padrão de apego se estabelece frente às primeiras experiências infantis, do ambiente em que a criança vive e dos traços de personalidade individual.
Capítulo 3 A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE
A palavra personalidade tem origem no termo latino persona, que significa máscara. A personalidade é então o conjunto de padrões duradouros do comportamento do indivíduo face à multiplicidade de situações. A personalidade encerra aquilo que torna o indivíduo diferente de todos os outros. A personalidade é uma construção pessoal que decorre ao longo da nossa vida e é um processo dinâmico em que intervêm diferentes fatores.
As teorias da personalidade são tentativas de interpretar, descrever e explicar o modo como os indivíduos se distinguem no seu estilo geral de comportamento, naquilo que os torna únicos e por isso os distingue.
Personalidade é a organização dinâmica dos traços no interior do eu, formados a partir dos genes particulares que herdamos, das existências singulares que suportamos e das percepções individuais que temos do mundo, capazes de nos tornar únicos em nossa maneira de ser e de desempenhar nosso papel social. Quando falamos, então, em elementos constitucionais da personalidade, estamos falando das características dessa personalidade que se formaram a partir dos genes herdados e das experiências particulares vividas.
3.1 A influência genética
A influência da hereditariedade, do meio social e das experiências pessoais têm uma grande importância no comportamento e desenvolvimento dos seres humanos. No entanto, a influência desses fatores é diferente em cada indivíduo e nas fases diferentes do ciclo de vida.
O patrimônio genético do ser humano define sua singularidade fisiológica e morfológica. A hereditariedade humana transmite traços específicos não só de natureza física, mas também de temperamento de base e também nos dons intelectuais. O meio social desempenha um papel importante na construção da personalidade. É impossível interpretar a conduta do indivíduo sem fazer intervir o meio social ou os meios sociais que exercem sobre ele as suas solicitações e suas determinações.
Ao lado das Tendências Naturais, capazes de identificar todos nós como pertencentes à mesma espécie, vamos encontrar as peculiaridades próprias e particulares com as quais cada um se apresentará e se relacionará com o mundo. Estas diferenças funcionais de cada um através de suas considerações sobre os TRAÇOS PESSOAIS, verdadeiros arranjos pessoais e constitucionais determinados por fatores genéticos, os quais, interagindo com o meio em maior ou menor intensidade, resultariam numa característica psíquica capaz de particularizar um indivíduo entre todos os demais de sua espécie.
Entende-se os traços herdados como possibilidades de vir a ser e não como uma certeza de que será. Há uma quantidade enorme ainda pouco delimitada pela genética, de traços possíveis de transmissão hereditária, porém, apenas parte desses traços se manifestarão no indivíduo. Esta maneira singular da pessoa interagir com seu mundo, decorrente de seus traços pessoais, pode ser chamada de DISPOSIÇÃO PESSOAL.
Existem evidências sólidas em estudos de grande escala, metodologicamente convincentes, de que os genes influenciam a personalidade adulta. Surpreendentemente, o mesmo não é verdadeiro para a hipótese do papel preponderante da criação pelos pais. Uma revisão crítica da literatura mostra pouca evidência conclusiva quanto ao ponto de vista de que eventos específicos do período de infância são os verdadeiros responsáveis pela arquitetura da personalidade adulta.
Segundo Marco Montarroyos Calegaro, psicólogo evolucionista, no artigo "Psicologia e Genética - O que causa o comportamento", de acordo com um estudo feito na Dinamarca, um país onde as adoções e também os registros criminais são feitos meticulosamente, todos os meninos adotados em Copenhage em 1953 foram acompanhados. Descobriu-se com base nos registros criminais dos pais (biológicos e adotivos) e dos filhos quando adultos que somente cerca de 11-12% destes cometia crimes se o pai biológico, doador de 50% dos genes, nunca houvesse cometido um crime. Isso tanto para crianças adotadas pôr pais adotivos criminosos ou não. Ou seja, não houve diferença significativa na criminalidade pela influência de ser criado por um pai adotivo criminoso.
No entanto, de modo geral podemos dizer que, se de um lado temos pouca evidência convincente sobre a influência de eventos atribuíveis às interações com os pais durante a infância na personalidade adulta, por outro temos estudos apontando que gêmeos idênticos são muito mais semelhantes um com o outro quando adultos do que gêmeos fraternos criados juntos, e isso acontece mesmo que os gêmeos idênticos sejam criados em continentes diferentes, experienciando culturas diversas, diferentes sistemas religiosos, estrutura social, tipo de alimentação e outros fatores ambientais. Essas semelhanças foram verificadas em características como habilidades e deficiências cognitivas, depressão, raiva, bem estar subjetivo, otimismo, pessimismo e mesmo traços como religiosidade, autoritarismo, satisfação no trabalho e muitos outros.
Como argumento adicional, foi possível observar que os filhos adotados não crescem com personalidade semelhante aos seus pais adotivos, na verdade, são muito mais parecidos com seus pais biológicos, embora muitas vezes não tenham sequer os conhecido.
É evidente que os fatores não genéticos são muito importantes, e é a genética comportamental que oferece substrato a essa afirmação. Mas, novamente, um exame desapaixonado das evidências aponta conexões causais diferentes do senso comum. É importante lembrar que as influências ambientais, ou não genéticas, incluem fatores que incidem desde a concepção até o nascimento, influências fetais de níveis hormonais por exemplo, e a totalidade dos estímulos do meio durante o desenvolvimento da pessoa após o nascimento.
3.2 A influência do ambiente
As experiências traumáticas precoces, também passam a fazer parte integrante e importante da personalidade em desenvolvimento. Portanto, contribuirão significativamente para a constituição da pessoa. Isso quer dizer que o termo "constitucional" não se refere exclusivamente ao que é genético, mas à interação entre o potencial genético e a influência ambiental precoce.
Se uma pessoa teve a sorte de crescer em um bom lar comum, ao lado de pais afetivos, dos quais pôde contar com apoio incondicional, conforto e proteção, consegue desenvolver estruturas psíquicas suficientemente fortes e seguras para enfrentar as dificuldades da vida cotidiana. Nestas condições, crianças seguramente apegadas aos seis anos são aquelas que tratam seus pais de uma forma relaxada e amigável, estabelecendo com eles uma intimidade de forma fácil e sutil, além de manter com eles um fluxo livre de comunicação (Bowlby, 1984).
Ao definir a sua teoria do amadurecimento pessoal, ou teoria do desenvolvimento emocional do ser humano, Winnicott, pediatra, psiquiatra infantil e psicanalista, enfatizou que esta inclui a história total do relacionamento individual da criança até seu meio ambiente específico. É uma história que compreende o crescimento emocional do bebê e da pessoa cuidadora desse bebê, daquela que atende às suas necessidades específicas, ou seja, da mãe como "ambiente suficientemente bom" – a pessoa responsável pelas condições facilitadoras para que o crescimento do bebê se efetive. Deste modo, essa teoria acaba por compreender, também, o que acontece diante das interferências que dificultam ou impedem a suficiência do ambiente e, conseqüentemente, o crescimento do bebê.
Desde muito cedo, Winnicott já verificava que, ao se estudar o adoecimento psíquico de uma pessoa, o curso da enfermidade ficaria compreensível como uma expressão das dificuldades próprias da vida, quer sejam nas tendências herdadas, quer sejam na influência do ambiente, quer sejam na interação de ambas.
De acordo com Rico, psicólogo citado por Juliana Alencar de Souza, especialista em psicologia da saúde, em "A formação do vínculo afetivo", podemos dizer que com o decorrer do tempo, a experiência de desconforto transforma-se em emoção e tem início a formação de idéias sobre as intenções maternas em relação a si mesmo. Desta maneira, se a mãe for amorosa e tiver uma relação afetiva rica com seu bebê, contribuirá para que nasça uma criança confiante e segura de si. Assim também, mães deprimidas ou ambivalentes que, por uma razão qualquer, privam o feto de seu amor e apoio, certamente favorecerão o estado depressivo e a presença de neuroses na criança, que podem ser constatados após o nascimento, pois sua personalidade foi estruturada num clima de medo e angústia.
Para Winnicott, não é possível pensar em trabalho isolado com a criança, ou estudar a etiologia de uma doença, tendo como objeto de estudo apenas o indivíduo afetado pelos sintomas da doença. É preciso também um estudo de seu ambiente e das suas relações com este ambiente, para compreender a natureza do problema e desenvolver um trabalho alterador das condições da criança. Para ele, o ambiente, no início, devido a dependência extrema do bebê, deveria adaptar-se totalmente ás suas necessidades, e, a medida em que o bebê for amadurecendo, o ambiente deve desadaptar-se, de acordo com a capacidade crescente do bebê de utilizar seus próprios recursos. Ao cometer falhas, esse ambiente seria capaz, então, de repará-las em tempo hábil, num tempo que o bebê poderia suportar sem viver uma agonia insuportável para o seu psiquismo.
De acordo com os psicanalistas Winnicotte Lebovici , citados por Juliana Alencar de Souza no artigo "A formação do vínculo afetivo", certos fatos se destacam com muita clareza; um deles é que quanto menor for a criança, maior será o perigo de separá-la de sua mãe, pois quanto mais jovem for a criança, menor será sua capacidade para manter viva em si mesma a idéia de uma pessoa. A criança não se recupera facilmente do trauma de separação de sua mãe. Com isso, é importante esclarecer que a qualidade do vínculo influencia diretamente o desenvolvimento físico e emocional do bebê, formando, assim, uma base para um posterior pregresso adicional.
3.3 A função materna
Atribui-se cada vez mais importância aos estágios de desenvolvimento da infância na construção da personalidade. A relação mãe/filho é um dos aspectos que mais têm sido estudados. As características desta relação, no primeiro ano de vida, vão ter um grande peso no desenvolvimento futuro da criança. A complexidade das relações familiares vai influenciar as capacidades cognitivas, lingüísticas e afetivas, processos de autonomia, de socialização, de construção de valores das crianças e dos jovens.
As fases que propõe como sendo organizadoras do psiquismo, incluem uma etapa do desenvolvimento no qual o eixo psicológico é a separação-individuação da criança em relação à mãe. A evolução normal ou patológica da criança seria conseqüência da forma como se configurariam as etapas anteriores e, principalmente, esta última fase do desenvolvimento mental.
Mahler, psicóloga do desenvolvimento , citada por Anelise Hauschild Mondardo da Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul no artigo "Ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança", destaca que os três primeiros anos de vida da criança possuem importantes tarefas estruturantes, cujo alcance e passagem são determinados por dois fatores: primeiro, a dotação genética do bebê, que o impulsiona para o vínculo com o meio ambiente, permitindo perceber e aceitar os cuidados proporcionados pela mãe; e, segundo, a maternagem, ou seja, a presença de uma mãe que verdadeiramente proporcione esses cuidados.
3.4 A totalidade do ser
O "determinismo genético" postula que certos aspectos de nossa personalidade e nosso comportamento seriam definidos por nossos genes, de modo inescapável. Porém, sabemos hoje que todo comportamento depende, em maior ou menor grau, de fatores genéticos e de fatores ambientais, interagindo de maneira extremamente complexa. A palavra determinação deve ser substituída por expressões como tendências, propensões ou influências genéticas. Os genes definem tendências, mas são as experiências individuais que, sempre, as modulam. Qualquer gene precisa, para haver a chamada expressão adequada, de determinadas circunstâncias externas, sejam bioquímicas, físicas ou fisiológicas, ou ambientais.
Discute-se se existiria uma personalidade mais imune às vivências traumáticas ou, por outro lado, se o apoio social e familiar seria o fator decisivo para essas crianças se recuperarem, impedindo assim uma conseqüência mais patológica do trauma. O que se vê na clínica e na vida em geral, embora não seja "politicamente correto", é que as conseqüências psicológicas das vivências parecem depender muito mais da personalidade sobre a qual agem essas vivências do que das próprias vivências em si. Isso corresponderia a dizer que as reações dependem muito mais do agente "agredido" do que do agente "agressor". Entre as variáveis potenciais que determinam as conseqüências dos traumas vividos por crianças e adolescentes em longo e médio prazo, devemos considerar fortemente as eventuais psicopatologias e predisposições preexistentes nessas pessoas com Transtornos da Personalidade.
A idéia de buscar fora da pessoa os elementos que explicassem seu comportamento e sua desenvoltura vivencial teve ênfase em teorias segundo as quais era a sociedade quem corrompia o homem. Outra concepção acerca da Personalidade foi baseada na constituição biotipológica, segundo a qual a genética não estaria limitada exclusivamente à cor dos olhos, dos cabelos, da pele, à estatura, aos distúrbios metabólicos e, às vezes, às malformações físicas, mas também, determinaria às peculiares maneiras do indivíduo relacionar-se com o mundo, seu temperamento, seus traços afetivos, etc.
Podemos considerar a totalidade do ser humano como sendo um balanço entre duas porções que se conjugam de forma a produzir a pessoa tal como é:
1- uma natureza biológica, tendo por base nossa natural submissão ao reino animal e nossa submissão também às leis da biologia, da genética e dos instintos. Assim sendo, os genes herdados se apresentam como possibilidades variáveis de desenvolvimento em contacto com o meio (e não como certeza inexorável de desenvolvimento);
2- uma natureza existencial, suprabiológica, conferindo à Personalidade elementos que transcendem o animal que repousa em nós. A pessoa, ser único e individual, distinto de todos outros indivíduos de sua espécie, traduz a essência de uma peculiar combinação bio-psico-social.
O psiquiatra Geraldo José Ballone, no artigo "Teoria da Personalidade", disponível no site psiqweb, diz que
[...]A idéia de Personalidade poderia ser esbouçada da seguinte maneira: "PERSONALIDADE É A ORGANIZAÇÃO DINÂMICA DOS TRAÇOS NO INTERIOR DO EU, FORMADOS A PARTIR DOS GENES PARTICULARES QUE HERDAMOS, DAS EXISTÊNCIAS SINGULARES QUE SUPORTAMOS E DAS PERCEPÇÕES INDIVIDUAIS QUE TEMOS DO MUNDO, CAPAZES DE TORNAR CADA INDIVÍDUO ÚNICO EM SUA MANEIRA DE SER E DE DESEMPENHAR O SEU PAPEL SOCIAL[...]".
Segundo ele, o ser humano não pode ser considerado como um produto exclusivo de seu meio, tal como um aglomerado dos reflexos condicionados pela cultura que o rodeia e despido de qualquer força mais nobre de sentimentos e vontade própria. Não pode, tampouco, ser considerado um punhado de genes, resultando numa máquina programada a agir desta ou daquela maneira, conforme teriam agido exatamente os seus ascendentes biológicos. Se assim fosse, passaria pela vida incólume aos diversos efeitos de suas vivências pessoais. Sensatamente, o ser humano não deve ser considerado nem exclusivamente ambiente, nem exclusivamente herança, antes disso, uma combinação destes dois elementos em proporções completamente desconhecidas.
Capítulo 4 QUANDO O AMBIENTE FALHA
Segundo a teoria do amadurecimento, elaborada por Winnicott, pediatra, psiquiatra infantil e psicanalista inglês, todo individuo humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento. Mas, que apesar de inata, trata-se de uma tendência, e não de uma determinação. Para que a tendência venha a realizar-se, o bebê depende fundamentalmente da presença de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. Segundo essa mesma teoria, o amadurecimento começa em algum momento após a concepção, e quando não há incidentes pelo caminho, não cessa até a morte.
Segundo ele, as psicoses, assim como a tendência anti-social, são resultado do fracasso ambiental na sua tarefa de favorecer a continuidade dos processos de amadurecimento nas etapas mais primitivas em que impera a dependência. Esses distúrbios apontam para falhas na estruturação da personalidade e do caráter.
Diz Winnicott (1993), que
[...]as psicoses são distúrbios relacionadas ao fracasso ambiental na sua missão de facilitar as conquistas dos estágios iniciais – que começam em algum momento da vida intra-uterina e vão até o estágio do EU SOU, que ocorre, em geral, por volta de um ano ou um ano e meio. Se o ambiente falha, repetidas vezes – ao modo de um padrão estabelecido –, em se adaptar às necessidades do bebê durante a etapa de dependência absoluta, e mesmo relativa, ocorrem traumas e o processo de amadurecimento pessoal é interrompido, nesse momento primitivo em que estão sendo constituídos os alicerces da personalidade. Isso dá origem a um distúrbio psicótico[...].
4.1 As falhas ambientais e as falhas na estruturação da personalidade
A chamada Teoria do Vínculo, ou da Ligação Afetiva , diz respeito à necessidade de amor materno, ou algo bem parecido com isso, para as crianças se desenvolverem bem emocional e cognitivamente. Essa ligação criança-mãe precisa, segundo especialistas, de uma importante continuidade de cuidado efetivo para ser eficaz.
Segundo Winnicott (1993),
[...]é no útero materno que biológica e fisiologicamente surge o ser humano, e durante esse estágio, já se estabelece uma relação interpessoal fundamental entre o filho e a mãe, produzindo trocas não só fisiológicas, mas também afetivas. Os processos clínicos de pesquisa indicam uma relação entre o comportamento pré e pós-natal de uma criança e a atitude de aceitação ou rejeição que a mãe assume em relação ao filho[...].
Quando examina-se o processo de desenvolvimento, descobre-se que ele só ocorre de maneira saudável, ao se estabelecer uma relação de afeto com as figuras parentais. Ao se compreender essa dinâmica, descobre-se a necessidade de a criança ser recebida dentro de um clima de aceitação e de afeto. A afetividade se desenvolve nas relações interpessoais com as figuras parentais. Esse afeto não tem origem na ligação genética., mas nas relações que resultam da satisfação das necessidade básicas de sobrevivência.
A criança constrói seu afeto, inicialmente, em direção ás pessoas que preenchem suas necessidades básicas indispensáveis para o seu crescimento. É ao longo da convivência que o afeto se expressa num mecanismo de troca.
Em suas pesquisas, Bowlby identifica que não é qualquer separação que vai provocar distúrbios de personalidade, mas são aquelas que causam privação à criança que vão causar consequências prejudiciais - porque constituem uma experiência em que a criança não chega a desenvolver um vínculo real.
Acredita-se que se a situação de privação não se reverter, o desenvolvimento afetivo destas crianças poderá ficar comprometido e até mesmo ser configurado em psicopatologias, distúrbios de conduta como delinqüência e dificuldade na formação de vínculos com outras pessoas no futuro - conseqüências possíveis, principalmente por não vivenciarem uma experiência afetiva gratificante na primeira infância.
Ainsworth, citado por Cecília Casali Oliveira no artigo "O apego infantil", define privação materna como tendo três diferentes dimensões: insuficiência ou ausência de cuidados maternos, cuidados distorcidos como ocorre na negligência ou hostilidade materna, e descontinuidade nos cuidados maternos, como ocorre nas separações.
Bowlby enfatiza que "variável alguma tem mais profundos efeitos sobre o desenvolvimento da personalidade do que as experiências infantis no seio da família: a começar dos primeiros meses e da relação com a mãe". Enquanto que Winnicott diz que as conseqüências da falha ambiental para a saúde psíquica da criança podem ser relacionadas de acordo com o momento em que a falha acontece, na linha da evolução, que parte da dependência absoluta rumo à independência. Se o bebê é bem cuidado, ele amadurece recursos próprios que vão lhe permitindo uma dependência relativa. Se houver fracasso do ambiente nas fases iniciais, o resultado poderá ser uma predisposição a distúrbios afetivos e tendência anti-social. Na fase em que a criança já é capaz de cuidar de si mesma e o ambiente já está internalizado, se houver fracasso do ambiente, este já não será tão desastroso, do ponto de vista da estrutura da personalidade.
Segundo Winnicott (1993),
[...]a delinqüência é uma busca de solução por intermédio de uma tentativa de retorno à época em que as coisas corriam bem, para voltar a usufruir da posse do objeto primordial, de sua confiabilidade, e reconquistar a segurança e autoconfiança, graças às quais a criança podia manifestar sua destrutividade. Por meio de sua conduta delinqüente, diz Winnicott , é como se a criança estivesse compelindo a sociedade a retroceder com ela à época primordial e a testemunhar e reconhecer suas grandes perdas. A criança, segundo o referido autor, antes de se preocupar em não fumar, não vagar pelas ruas, não fazer isto ou aquilo, preocupa-se em não trair seu próprio eu – esta é sua moralidade precoce. E o seu "eu" inclui seus impulsos primitivos, construtivos e destrutivos[...].
A origem da enfermidade mental estaria, pois, nas dificuldades encontradas pela criança para realizar a tarefa determinada por cada uma dessas fases, isto é, no autismo normal, na simbiose normal ou na separação-individuação. Essas falhas podem ter sido provocadas por: defeitos inatos, incapacidade do ego para neutralizar as pulsões agressivas no estabelecimento do vínculo com a mãe; defeitos na relação mãe-filho: seja por patologia materna ou pela ausência real do par simbiótico e/ou traumas: doenças, acidentes, hospitalizações ou outros eventos que alterem a estabilidade emocional com a mãe ou a auto-imagem do indivíduo.
A intensidade e a precocidade dessas situações podem provocar importantes falhas no desenvolvimento infantil e, embora muitos autores definam diagnósticos de personalidade somente após o período evolutivo da adolescência, Palácio, psicólogo citado por Anelise Hauschild Mondardo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no artigo "Ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança",fundamenta a importância e os critérios com os quais é possível identificar, do ponto de vista estrutural, organizações psíquicas já mesmo na infância. O apego emocional e o comportamento de ligação estabelecidos nos primeiros anos fornecem um modelo internalizado das relações em que a figura de ligação assume um caráter único e insubstituível, sua permanência proporciona segurança e conforto para o indivíduo, a separação provoca estress e sua perda permanente causa sofrimento. O modo como cada pessoa aprende a se vincular emocionalmente com os primeirosobjetos de amor cria um modelo que serve de base para os vínculos emocionais posteriores, para o estabelecimento do significado da vida no futuro e para o modo como enfrenta as mortes de pessoas queridas ao longo da vida.
Winnicott estabeleceu, baseado em suas pesquisas com crianças afastadas de seus pais durante a segunda guerra mundial, que a relação mãe-criança tem uma importância fundamental e que separações precoces podem ser prejudiciais para o desenvolvimento das crianças e eram, em última análise, prejudiciais também para a sociedade.
Segundo a teoria de John Bowlby, a privação prolongada de cuidados maternos para uma criança muito nova pode causar efeitos de graves conseqüências no caráter, efeitos esses que podem se prolongar por toda a sua vida futura. E isso tanto se relaciona à crianças de orfanato, àquelas que sofrem separações dos pais, ou mesmo para aquelas que, apesar de viverem em seus lares, são abandonadas por negligência ou omissão. Este último caso é quando a mãe se encontra fisicamente presente e emocionalmente distante.
4.2 Quando procurar ajuda
Segundo a Dra. Bacy Fleitlich, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, citada por Gabriel Attuy no artigo "Psiquiatria: infantil é ignorar", publicado na Revista Espaço Aberto, da USP, no mês de março de 2003, a psiquiatria infantil ainda é encarada por muitos como exclusiva para crianças altamente problemáticas, com deficiências sérias como esquizofrenia ou depressão. "Esses são os problemas mais raros e os últimos na lista de crianças e adolescentes", diz a doutora Bacy Fleitlich, que realizou um estudo que produziu uma estimativa dos transtornos psiquiátricos mais comuns em crianças de 7 a 14 anos.
O transtorno de comportamento foi o problema mais comum, encontrado em 7% das crianças. "Ele consiste em uma série de comportamentos graves o suficiente para que a criança receba um diagnóstico médico", explica Bacy. Esse problema pode ser identificado a partir do momento que essas condutas passam a interferir na sua vida social, na escola e nas relações familiares.
O psiquiatra infantil avalia como a criança está em relação ao seu comportamento e suas emoções. E, assim como não é necessário esperar que alguém tenha um enfarte para levá-lo ao cardiologista, não é preciso esperar uma criança ser expulsa de três escolas para levá-la para fazer uma avaliação com um psiquiatra infantil", comenta Bacy. Por isso, a atenção e preocupação dos pais são importantes. Quando o comportamento da criança começa a prejudicar a sua vida escolar, seus relacionamentos ou o ambiente familiar, talvez seja a hora de considerar uma avaliação por um psiquiatra infantil.
Os transtornos infantis podem evoluir para problemas sérios na vida adulta se não forem tratados. Cerca de 1/3 das crianças com transtornos de comportamento têm risco de evoluir para um transtorno de personalidade anti-social (novo nome dado aos psicopatas).
Segundo o estudo, a desinformação e o preconceito são a principal causa que faz com que crianças com transtornos demorem muito mais do que o necessário para procurar ajuda médica e começarem a se tratar.
Segundo a Dra. Bacy Fleitlich, não existe no Brasil nenhum dado completo e atualizado sobre os principais transtornos infantis. E que o resultado disso é a desinformação e o preconceito, que faz com que as crianças com transtornos demorem muito mais do que o necessário para procurar ajuda médica e começarem a se tratar.
Segundo o psiquiatra Geraldo José Ballone, no artigo, "Quando se deve buscar tratamento psiquiátrico em crianças e adolescentes", é grande a dúvida na população e, às vezes, mesmo entre médicos de outras especialidades, sobre a necessidade de se recomendar ou procurar um tratamento psiquiátrico.
Continua ...
A CONSTRUÇÃO DO PSIQUISMO – parte 1/3
A CONSTRUÇÃO DO PSIQUISMO – parte 3/3
Gilson Tavares (psicanalista e educador)
http://estudoeanalisedocomportamentohumano.blogspot.com/
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