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Hoje, eu quero falar sobre a arte do conviver com o outro.
Conviver com o outro nem sempre é fácil, mas é necessário.
Conviver com o outro é tão necessário e tão importante que, segundo a antropologia, a ciência que estuda o homem e a sua evolução como espécie, o que contribuiu para a sobrevivência e para a evolução da espécie humana, principalmente o que contribuiu para que a espécie humana se tornasse o que é hoje, vivendo em sociedade, com algum grau de civilidade. Digo com algum grau de civilidade porque ainda precisamos evoluir muito nesse quesito, civilidade, para podermos ser considerados uma sociedade civilizada. Mas voltando ao assunto. Segundo a antropologia, o que permitiu que chegássemos até aqui, o que permitiu que nos tornemos o que nos tornamos, como espécie, não foi a força bruta, não foi a inteligência propriamente dita, não foi a utilização de ferramentas, e sim, foi a cooperação. Foi a cooperação que contribuiu para que a espécie humana pudesse se desenvolver, pudesse sobreviver e pudesse evoluir.
A cooperação levou à necessidade da convivência, à necessidade da partilha, Á necessidade de cuidar uns dos outros. E segundo a antropologia, assim nasceu a civilização.
Segundo a antropóloga americana Margaret Mead, professora da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, em meados do século passado, quando questionada por um aluno sobre o que ela consideraria os primeiros sinais de vida social da espécie humana, os primeiros sinais de vida em sociedade, mesmo que primitiva, os primeiros sinais de civilização. Esperando que ela respondesse que seria potes de barros, ou ferramentas para a caça, ou pedras de amolar instrumentos para a caça, ou instrumentos religiosos, ela respondeu que, para ela, o que ela considerava como primeiros indícios de civilização, foi o encontro de um fêmur fraturado e curado em um sítio arqueológico de cerca de 15.000 anos.
Por que ela falou isso?
Porque, durante os milhares de anos que a espécie humana vagou pelo planeta, vivendo como nômades, sobrevivendo da caça e da coleta de frutas, enfrentando ou fugindo de predadores, sofrer qualquer fratura que impedisse o deslocamento e a busca do próprio alimento, seria inevitavelmente uma sentença de morte.
Encontrar em um sítio arqueológico um fêmur fraturado e curado significa que alguém cuidou daquele que fraturou o fêmur. Ou seja. Não apenas havia indícios de vida em sociedade, mesmo que rudimentar. A convivência e a cooperação para aumentar as possibilidades na caçada, a convivência e a cooperação para aumentar as possibilidades de sobrevivência no enfrentamento dos muitos desafios e perigos da vida selvagem, mas também a convivência e a cooperação nos cuidados uns com os outros.
Conviver com o outro significa exatamente partilhar de uma vida em comum com o outro.
Conviver com o outro significa partilhar com o outro.
Conviver com o outro significa também cuidar do outro.
Partilhar a vida; partilhar o mundo; partilhar as experiências; partilhar os conhecimentos; partilhar os espaços públicos.
Enfim, conviver significa exatamente viver com o outro.
E nem sempre isso é tão fácil não é?
Por que?
Porque conviver com o outro não é apenas viver com o outro ao lado do outro, como nos relacionamentos, mas viver com o outro, no sentido de respeitar o outro, no sentido de respeitar os direitos do outro, no sentido de respeitar a forma de viver do outro, no sentido de respeitar a opinião do outro, no sentido de respeitar as escolhas do outro.
E como temos falhado nisso, principalmente nos tempos atuais, com o advento das redes sociais, que deveriam ser um meio para aproximar as pessoas, mas que têm sido largamente usadas para atacar as pessoas, que têm sido usadas para ditar a forma dos outros viverem, que têm sido usadas para desrespeitarem uns aos outros, de todas as maneiras.
Será que perdemos totalmente a noção do que é a arte do conviver com o outro?
Não é fácil, mas é possível e é necessário.
Atualmente, vivemos grudados nos noticiários, nos jornais, nas redes de informações, nem sempre confiáveis, sempre com a intenção de analisarmos os comportamentos das outras pessoas, e claro, com o objetivo de encontrar falhas e erros, mesmo que não sejam verdadeiras, para assim podermos julgá-los e podermos atacá-los.
E agindo assim, temos cada vez menos tempo de olhar para nós mesmos, tempo para olharmos as nossas falhas, tempo para olharmos os nossos erros.
Segundo Freud, o criador da psicanálise, quanto mais Paulo fala de Pedro, melhor eu conheço Paulo.
Ou seja, quanto mais apontamos as falhas e os erros dos outros, mais nos identificamos com as mesmas falhas e com os mesmos erros.
Isso chama a atenção para uma reflexão, sobre que comportamentos que vivemos apontando no outro, mas que na realidade é nosso.
Na convivência com o outro, precisamos sempre, ao mesmo tempo, ter a noção de que lidamos com alguém diferente de nós, com uma história de vida diferente da nossa, com expectativas diferentes das nossas, mas que também, sente como nós, que também ama como nós, que também tem sonhos como nós.
Na interpretação da sua convivência e da sua relação com o outro, o ser humano se depara com um outro ser ao mesmo tempo tão igual e tão diferente dele mesmo, precisando aprender a lidar com todo o conflito gerado pelas identificações que faz com esse outro, precisando aprender a lidar com todos os sentimentos escondidos e que são despertados na relação com esse outro.
Porém, mais do que servirem para destacar as diferenças entre cada ser, e assim, incapazes de conviverem, os conflitos gerados na relação com o outro podem, e devem, ser aproveitados como ferramentas de transformação e como oportunidades de autoconhecimento e de crescimento pessoal.
Sendo assim, para que os conflitos surgidos na relação com o outro se convertam em ferramentas de transformação, algumas palavras precisam ser incluídas em nosso vocabulário.
Entre essas palavras, estão: a tolerância; a flexibilidade; o perdão; a aceitação do outro como um ser imperfeito; reconhecer que também não somos perfeitos; aprender a enxergar verdadeiramente o Outro, e não apenas o que nos incomoda no outro; enxergar além das divergências; aprender que, na maioria das vezes, as pessoas erram na tentativa de acertarem; aprender a Escutar o outro; aprender que podemos discordar das opiniões sem precisar discordar das pessoas; perceber que podemos aceitar a opinião do outro, sem a necessidade de nos sentirmos diminuídos por isso; aprender que nem sempre é necessário encontrar um culpado; aprender que só podemos contribuir para a mudança do outro buscando a nossa mudança primeiro.
Gilson Tavares
Psicanalista Clínico e Organizacional
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